ZELADOR ANDARILHO: COSTELETAS FAMILIARES

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

COSTELETAS FAMILIARES

As costeletas, nas laterais do rosto, próximas das orelhas, começam a crescer. Olho-me no espelho do esfumaçado banheiro. O banho termina.
A noite leva-me à casa de Kella. Revirando voltas na Zona Norte da cidade o ônibus para. Eu desço.
Kella quando me vê sorri. Chama Bib, a filha, que brinca com Cíon, o pai. Ella, mãe de Kella, já se encontra presente.
Conversas e cervejas. O jantar é servido. Elogios, espantos, polêmicas, flores. No cardápio o prato da noite: costeletas grelhadas com purê, aspargos verdes e tomatinhos.

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REGISTROS EM PAPEL RECICLADO I

Môn, corpo de leoa, entra nos textos. Veste-se com páginas fabricadas com papel reciclado. Anuncia que o caderno para apontamentos de lembranças será sorteado. Solicita o nome dos interessados em participarem do sorteamento.
Escrevo o meu nome quase rugindo. Desejo domá-la, ganhar aquelas páginas furiosamente.
Horas depois o sorteio é realizado. Não compareço à arena do imprevisível. Fico envolvido com os textos.
Tsuneo, japonês cinéfilo, homem comum, vai aos gladiadores e às feras. Retorna sorrindo com as páginas nas mãos.
Silêncio e expectativa. Os textos quebram o suspense e indagam ao japacine o resultado do acaso.
O caderno vem ao ganho e às letras do meu nome sorteado feito vinho, água mineral, frutas picadas, palavras de leoa.

ARDÊNCIAS DA VENTANIA

Um filme sobre o amor narrado de forma diferente. A fome atravessa as horas. Fogos a queimar nos ventos. O relógio no pulso badala a necessidade das cópulas, pernas, bocas, narizes e olhos. Lá vem o cheiro dos ônibus a virar o pescoço dos homens e mulheres semeados no ponto. Quem espera o destino do transporte entra nos sonhos com ares de até que enfim. Observo a cidade pela janela em busca de um amor. O tempo paga a passagem, a bebida, fotografa o mundo. No ponto final acendo o último cigarro do maço. Entro e me fixo nas labaredas da tela.

BRISTOLÂNDIA, SIDERURGIA LISÉRGICA

Antes da reforma, que veio depois de um incêndio no Center 3, avenida Paulista, os cines Bristol e Liberty possuiam personalidades próprias.
O Bristol sustentava em sua escadaria de madeira uma armadura medieval prateada; o Liberty homenageava a art nouveau. Ao percorrê-lo o olhar se deparava com vitrais florais.
Depois da reforma, que subdividiu os cinemas em 7 salas, o elmo, a couraça e as luminárias foram triturados. Cortadas em tamanhos mínimos milhares de plaquetas de ferro foram dependuradas no teto da bristolândia.
Lembro-me agora da armadura enquanto espero o início da sessão das 17h.
Precedências: garganta inflamada, gripe, melancolia com gosto de pó de laranja. Àgua e ácido ascórbico na tentativa de ativar as defesas do organismo.
Ao meu lado, de roupas pretas, às margens dos 18 anos, um casal nada decaído, de futuro nada promissor, faz dos beijos a revolução.
Ela, a menina, entretida com o namorado e ambos com fanzines que cheiram Sex Pistols, Eddie & The Hot Rods, The Damnet, The Stranglers, The Vibrators veste uma camiseta com o dizer Punk's Not Dead impresso no peito.
Ele, o menino, usa uma camiseta dos Ratos de Porão.

Hora da sessão. Depois de subir uma escada rolante entro na sala 3 sob a tela. Quando as luzes se apagam e o filme começa vou com os meus pés ao mar. A cabeça, siderurgia lisérgica, repousa em conchas de metais.

CAFÉ, CRÍTICO, SAMURAI E AMELINHA

Ontem fui ao cinema. Não bebo café. Hoje a cafeteira está borbulhante. Tarde novata. Sol de mestrado. Pingo suores. Penso em retornar ao cinema. Um filme que nada tão assim me parece. O café está muito quente. Pego o copo de vidro. Quero água gelada. Atravesso o pátio do amanhã. Mato a sede. Dá-se, então, o encontro com Martin Pasqualis, o crítico de cinema: - Vai ao cinema hoje? indaga-me com ares europeus. - O Último Samurai, Tom Cruise... respondo-lhe com o copo cheio de água. - Ratátátátátá...ratátátátátá!!! -dispara a metralhadora no filme. Faz feições de vômitos.
A faxineira moreninha de pinta no nariz limpa o chão vomitado. - Vomitou café o homem. -explica a limpadora à Amelinha.

CANTOS SOLITÁRIOS DOS ÂNGULOS RETOS

A cidade está calma. Eu estou nervoso. Meus trânsitos interiores se congestionam entre o passado, o presente e o futuro. A rua mexe com a fome. Meu corpo quer corpos. Os sinais dos trânsitos exteriores vivem rabiscados de vilanias. Começo a ficar calmo. A cidade a ficar nervosa. Nossas trocas acontecem nos cantos solitários dos ângulos retos. Visto-me de cimento. A urbe se desnuda. Na fome de neons apagados atravesso a avenida. A rua mexe com os jardins. O sol se reflete nos carros. O buzinaço é total. A cidade está nervosa. Bilheteria. Falta pouco para a próxima sessão. Fico na sala sentado com uma árvore no coração da espera. Assim vejo os corpos chegarem. Eu estou calmo.

CINE CHÃO BLOQUEADO

Quero ir ao cinema de forma desbloqueada. O dinheiro, porém, anda curto e o preço do ingresso uma fábula. A fita VHS, emprestada por muitos dias, espera a hora da mostra. Mas nada da porta se abrir e Ella entrar ávida por Q & A-Sem Lei, Sem Justiça. Suspense retornado: as chaves fazem ruídos sim. Ruídos na porta do apartamento ao lado. Irresistível copo d'água. Mato a sede da espera. Finalmente a campanhia soa. Olho mágico. Outra contracena: vem à tona o geólogo do apartamento do segundo andar pagar o aluguel da garagem. Dinheiro vivo. Quero agora ir, é lei, ao bar da esquina de forma desbloqueada e justa.

CINE CHÃO AQUECIDO

Alugo a fita VHS do filme Amor e Restos Humanos. À noite, coloco a fita no videocassete. Apagamos as lâmpadas. Ella e as pipocas. 50 minutos de filme o interfone toca. Pausa! Atendo e peço para subir. Abro a porta do apartamento depois de usar o olho mágico. É o buscador! O antigo aquecedor de gás, trocado por um moderno, entra no porta-malas do carro do buscador. Sem necessitarmos arrancar orelhas de ninguém definimos sem medo durante o dia o destino do jurássico aparelho doméstico. E ele se foi. Pausa finalizada. Play! O restante do filme foi assistido, coitado do Mitsubishi HS-M36, de modo corrosivo. The end.

CINE CHÃO DO MEIO FILME

O cobertor estendido no chão da sala de visitas fornece travesseiros, uma chuva frienta e uma solidão sem tristeza provocada por ser a noite a fortuna das sombras. Deito-me no tempo a assistir Coisas que voce pode dizer só de olhar para ela, filme de Rodrigo Garcia com Glenn Close, Cameron Diaz, Holly Hunter. A lentidão do desenrolar da história me chateia de maneira acelerada. A chuva frienta puxa os ventos da cidade a uma tristeza sem solidão ocasionada por ser a noite a nudez dos sonhos. No meio do filme estendido no chão da sala de visitas deixo a outra metade para depois.

CINE CHÃO GRÁTIS

CINE GEMINI - SALA 1

Depois de alguns anos retorno ao Gemini, avenida Paulista. Projeto nunca ter vivido motivo esfuziante para ocasionar tal ausência. Provável que o afastamento se deu devido à abertura de outras salas de exibições cinematográficas, que vestidas de novidades, programações diferenciadas, atingiram as atenções. E no início da noite depois de ter cruzado a avenida entro no Gemini a observar os movimentos das sombras. Sento-me nas poltronas arcaicas e confortáveis da sala de espera. Quando a outra sala se escurece a cidade outra vez se ilumina.

CINE GEMINI - SALA 2

Depois do banho entro no ônibus. Vou ao cinema. Olho pela janela as ruas passarem. Cheiro os braços perfumados pelas algas. A cidade passa feito milhões de borboletas compenetradas no caos. A noite começa a se tornar feminina quando caminho pela avenida Paulista. Tento descobrir nas mulheres que passam pela calçada a mulher que altera o tempo presente do homem que ama. As algas multiplicam-se em ondas pelo trajeto. Saem pelas fendas dos cimentos, dos sonhos concretos, das portas e janelas de vidros, dos olhares dos transeuntes e da máquina de fazer pipocas. Sento-me na poltrona do Gemini. Vejo as ruas se espumarem.

CLUBE DA LUTA

Certo de ir ao cinema, sessão das 13h40, pisco os olhos. Entro no shopping com fome. O Pagamento. Prefiro suco de laranja com sanduíche de beterraba. Entro na sala. Lotação adequada. O filme começa. O silêncio. Ainda quando as luzes da platéia estavam acesas reparei que um homem sentado do lado oposto carregava um saco plástico de uma estranheza sem igual. Ao final do filme, quando os créditos escalam a tela, fico me perguntando por quais motivos um estudante de medicina, em 3 de novembro de 1999, descarregou uma metralhadora no cinema de um outro shopping matando três pessoas e ferindo cinco. Seria o fim?

DEDOS NA GOELA

A porta se abre. Saio do trem. Estou na estação Tatuapé do metrô. Há um sol anormal que não derrete o mal-estar. A ânsia de vomitar me faz acelerar os passos na multidão de todos os dias.
Atravesso corredores do shopping-center. Penetro no banheiro. Forço o vômito enfiando os dedos na goela. Mãos lavadas.
Interrogo-me se é suportável ir ao cinema. Não estou passando bem.
Tento compreender a fome, a sede que deságua. Preciso dar tempo ao tempo.
Por mais de três vezes passo ao lado da bilheteria. A perturbação orgânica não me encoraja a entrar na sala. Não é mesmo o dia de cinemeirar.
A porta se abre. Sem fazer mal a uma mosca entro na hora do almoço.

DOIS DIAS SEM TELEFONEMAS A USAR A MESMA CALÇA

Dois dias nos mesmos fonemas. Primeiro estou no cinema. Depois resolvo como enunciar o teorema. No primeiro dia leio o jornal. Coloco a roupa da hora. Averiguo o horário. Fico na entrada do cine Bristol à espera da minha primeira namorada. No segundo dia bebo cerveja na Formosa. Leio um guia ilustrado sobre desemprego no Brasil. Acho no chão um compendiozinho de receitas cujo título é Claras e Gemas. Na porta do bar uma puta me fascina declarada. Ofereço-lhe o bombom da sessão anterior.

DOIS FILMES SEGUIDOS

A multidão provoca alaridos. Na fila testo a paciência das idades. Depois confesso, de maneira juvenil, à garota dos bombons que irei assistir a dois filmes seguidos. Às 16h30, minhas atenções seriam para Kill Bill-Volume 1. Às 19h, superatualizado, entregaria-me a Kill Bill-Volume 2. Não evito as pipocas. Bebo um refrigerante. Deixo o bombom para depois. Vou ao banheiro e, pronto, inopinadamente ocorre de me machucar na tranca da porta. O dedo anular da mão esquerda se fere. Devido ao sangue, que não foi pouco, retiro a aliança dos pactos que Deus fez com os homens. Na dor, a paciência encontra a xingadela.

LANÇAMENTOS

Sob sol cáustico caminho a seguir, breve, a aguardar as sombras, mudam de cor em vários momentos, das nuvens. Confirmam as previsões meteorológicas: o sol é o portal dos trilhos das tempestades.
Entro na videolocadora. Projetam-se na memória romances possíveis, capa e espada, góticos, impossíveis. Amo a cidade abrupta e a delicadeza da mulher na janela. Retenho o suspense, o noir dos trovões que ressoam ao longe em tiros de diamantes depois das luzes fúlgidas dos relâmpagos. Semelhante às ficções do espaço cósmico, a veia poética, nave, robotiza-se quando alimento-me com os polens das flores que não riem. O erotismo dos filmes tornam-se explícitas penetrações, duros tatos no corpo de uma fêmea exibicionista. O terror enfeitiça em vida. Na ilusão o sangue é suco de groselha, a morte efeito especial.
Por fim, escolho o filme querido: uma comédia. Saio da videolocadora.
Na rua a enxurrada segue viaturas policiais, que sem dramas, buscam os motivos das prisões.
Entro na noite.

PASSAGEM AZUL

Sento-me na poltrona da sala de espera do CineSesc. Permaneço com a temperatura interna na busca do equilíbrio. Escuto os ruídos da sessão anterior, ainda em andamento, enquanto a cidade engole a tarde cena após cena. Penso nas bicicletas, suas curvas e retas, no rosto virado para o vento. Parece-me ver no instante uma bicicleta descer veloz a rua. Porta do cinema servindo-me de janelas a analogias. Dentro do corpo o coração se deixa escrever e pedalar pelas artérias creditadas no final da projeção. Passos. Pessoas saem das bicicletas. Entram no silêncio e no cinema à espera das luzes. Equilíbrio térmico da emoção.

POMPI

O encontro acontece na fila do cinema. Chamo o encontrado de Pompidour, apelido inventado sem motivo racional. Pompi, crio intimidade, com seus cabelos grisalhos, postura esguia. E o desencontro inicia-se quando inicia-se esse encontro. Nunca tivemos assuntos um para o outro. Pompidour é inofensivo. Sinto, porém, certo maquiavelismo no seus gestuais. Ele compra o ingresso. Afasta-se sem pronunciar nenhuma sílaba ou mesmo um oi, tchau (cumprimentos joviais) ou um adeus (sinal de despedida). Não resisto ao enigma: qual o nome do filme que Pompi escolheu para assistir?

TATUAPÉ

Certo do mundo entro no metrô rumo ao Tatuapé. O amor acontece em vida. Preciso me esconder da morte. A viagem dá a certeza de que a morte e a vida são irmãs com ideologias diferentes. O metrô não deixa de ser passageiro. O cimento é eterno. Os berços são fragéis, balançam; e os túmulos são raízes estáticas. Os pés andam a servir as pernas, acompanhantes das mãos. Mexem-se porque há cérebro e coração. Quero ir ao cinema. Exposição de tubarões. A sessão do cinema ainda demora. Sinto medo ao ficar com os peixes elasmobrânquios, pleurotremados e devorantes. O mundo é assim mesmo! Fim. O filme termina. A cidade é impávida, destemida. Deus é meticuloso e onipresente. Certo dos extremos deixo o shopping-center para trás sem querer tropeçar e levar um tatu, cair.

TRANSPLANTE DE AMOR

O sol faz as sombras de tocáveis pessoas. Certas palavras não vivem só em instantes. Faltam 5 minutos para o filme começar. Sala cheia. Ao meu lado uma mulher cutuca o telefone celular. Desliga-o. A claridade da projeção deixa as faces bonitas. As angústias do filme se expandem. 21 Gramas, cine Bristol, sala 6, termina. A música e os créditos finais me deixam palpável sentado na poltrona. A mulher ao meu lado outra vez cutuca o telefone celular. Liga-o. Eu a olho sob o sol à espera de um transplante de amor.

VAMPIROS DO TATUAPÉ

UROLOGISTA

No sofá da sala de espera do consultório do urologista, com o resultado do exame em mãos, observo a Daisysi, a recepcionista com traje de enfermeira, atender e falar nos telefones.
Engraçada sem ser risonha, ela separa as fichas dos pacientes, classifica os resultados e me indica a localização do banheiro. Vou lá.
Fecho a porta. Abro a braguilha. Examino o meu pênis. Diagnostico normalidade. Lavo as mãos evitando me mirar no espelho. Antes de sair cravo a vista em um pedaço da cidade dos textos que espreito na janela mínima do aposento do vaso sanitário.
Sento-me outra vez no sofá. Nada mais demora. Daisysi me informa o momento de entrar na sala do médico. Acato o pedido. Concretizo o retorno.
Revejo o urologista, que se parece com o Dr. Doc Brown, interpretado por Christopher Lloyd no filme De Volta Para o Futuro.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

COSTELETAS FAMILIARES

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